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ELEIÇÃO DE BOLSONARO PODE NOS DEVOLVER À MARGINALIDADE, DIZ LÍDER UMBANDISTA

Dirigente da tenda Lírio de Aruanda, localizada em São Paulo, conta porque a casa se posicionou contra o candidato e fala sobre o reflexo dessa decisão.

A Umbanda, religião tipicamente brasileira que completa 110 anos em novembro, é um grande caldeirão cultural. Ao ser fundada no Rio de Janeiro por um jovem de 17 anos chamado Zélio Fernandino de Moraes, estabeleceu como princípio a manifestação do espírito para a prática da caridade.

O lema anunciado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, entidade que se manifestava no jovem durante uma sessão espírita para a qual foi levado após recomendação de um familiar por conta da estranha paralisia que sofria, fundamentou um culto que abriu espaço para homens e mulheres historicamente marginalizados e explorados. A partir de então, viravam aconselhadores e curadores nos terreiros.

A figura dos negros escravizados, dos indígenas, dos imigrantes e das mulheres que lutam por liberdade passaram a remeter a arquétipos de espíritos que trabalham na forma de pretos velhos, caboclos, baianos, pombagiras e muitos outros.

*Para o doutor em Direito do Trabalho pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), advogado trabalhista e sacerdote Jackson Santos, 42, da Tenda de Umbanda Lírio de Aruanda, localizada na cidade de São Paulo, a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) representa a negação de toda essa diversidade e o desrespeito à história da Umbanda.*

Foi isso que levou, segundo ele, a se posicionar oficialmente contra a candidatura nas redes sociais. Segundo o dirigente, o voto em Bolsonaro por parte de umbandistas é resultado do desconhecimento sobre a história da religião e, pior, representa o perigo de o culto voltar à marginalidade.
Confira abaixo a entrevista.

Não é comum um terreiro se posicionar politicamente. Por que o Lírio resolveu fazer isso?

Jackson Santos – A Umbanda originalmente é uma religião de pobres, formada por uma massa muito grande de uma realidade que é sofrida. Temos muitas mulheres, inclusive, a imensa maioria dos terreiros é dirigida por mulheres. Hoje temos muito mais pessoas de várias raças, mas originalmente havia predominantemente negros, porque é uma religião de forte matriz africana. Todos esses grupos sofrem e sofrerão se um candidato que tem posicionamento misógino, racista e homofóbico for eleito. Quantas pessoas frequentam nossa casa e são mães solteiras e chefe de família? Quantos homossexuais? Porque a Umbanda é uma religião aberta a todos os credos e gêneros. A Umbanda de fato é uma religião que acolhe a todos sem perguntar de onde veio e o que faz na vida particular. Quando vi alguns médiuns da minha casa manifestando sua afeição ao candidato, eu vi que precisava me manifestar. Eu tenho a responsabilidade de fazer a comunidade refletir. No terreiro, eu não falo de política, mas nas redes sou formador de opinião e não posso pensar na eleição de um candidato que vai nos levar para a marginalidade novamente. Tenho colegas do Rio que tiveram aumento do IPTU com o Crivella (Marcelo Crivella, prefeito ligado à Igreja Universal). Vários terreiros estão entrando com ações contra administração pública porque o IPTU subiu mais de 500% para essas instituições. Não podemos misturar religião com política dentro do culto, politizá-lo, ali pensamos no amor ao próximo e propagamos isso, mas não posso deixar de me manifestar numa rede social.

Quais foram as reações? 

Santos – Tivemos muitas manifestações favoráveis e o interessante é que você percebe que quem debate favorável ao Bolsonaro vai para discurso de ódio e baixaria, enquanto os que têm o mesmo posicionamento nosso defende com argumentos, conteúdo e contextualização histórica.

Você conhece outras casas que se posicionaram da mesma forma?
Santos – As casas que são dirigidas por jovens dirigentes, da mesma idade que eu, até tem um posicionamento político e se manifestam. As casas com dirigentes mais velhos são mais reservadas, mais cautelosas em fazerem manifestações políticas. Há até quem curte, mas não se manifesta, favorável ou desfavoravelmente. Eu volto a dizer, penso que dentro do culto ecumênico não se deve misturar política, não se deve politizar o culto, mas como dirigente e líder espiritual tem de haver manifestação, porque sem a política não é possível a garantia da dignidade das pessoas que cultuam a Umbanda. Se tiver um candidato como esse, é provável que tenhamos muito mais ações preconceituosas junto a quem frequenta terreiros do que temos hoje. Temo pela laicidade do Estado. Sei que para isso teríamos de ter emenda constitucional, mas ações do presidente tem reflexo na sociedade. Temo pelos direitos das mulheres, negros, homossexuais ao respeito e são essas pessoas que fazem a Umbanda. Tenho de me posicionar para que as pessoas não votem sem pensar. É essa mudança que desejamos?

Você falou sobre o papel formador da religião, de combater preconceitos e aceitar a diversidade. Onde a religião erra quando um frequentador do culto escolhe um candidato que prega o preconceito? 
Santos – Nesse caso, o que há é a falta da maturidade. É a maturidade que fará com que tenham discernimento. Muitas pessoas frequentam as casas, mas não conhecem valores. Há filhos que são dedicados, apaixonados pela religião, mas simplesmente repetem que Lula é ladrão. “Mas por quê?”, eu pergunto. E não sabem responder. A intensidade da mídia é tamanha na vida das pessoas que o que é definido por ela vira verdade. Estamos na era da pós-verdade, não é o que acontece, mas o que querem fazer com que você acredite que aconteceu. A religião trabalha na formação moral, mas nem todos estudam os valores da religião. Não pensam que o comando dessa casa é de um casal homoafetivo, no qual confiam, e vão votar em uma pessoa que diz que casais assim não deveriam existir. A lobotomia é tamanha que não conseguem visualizar a contradição. Não cabe ao dirigente dizer que não pode pensar assim, eu preciso mostrar as relações para que eles mesmos amadureçam e transformem seus pensamentos. Não cabe ao líder espiritual dizer ‘faça’, o que eu posso fazer é oferecer a reflexão.

Desconhecimento das origens

Polêmicas não faltam para justificar a decisão de Santos. Se a Umbanda tem na cultura indígena, na tradição africana e no respeito às mulheres e à diversidade suas bases, Bolsonaro representa uma antítese de tudo isso. Em novembro de 2015, por exemplo, o candidato se disse contra a destinação de áreas para comunidades indígenas porque representava prejuízo para o agronegócio. Em 2008, quando da visita de um líder indígena à Câmara dos Deputados para discutir a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, afirmou que “ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens."

Segundo o site Rota Brasil Oeste, durante sessão na Câmara para avaliar a demarcação da mesma área, ao referir-se à luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), apontou que “apesar de abonado e constituído por pessoas educadas que falam a nossa língua”, não consegue fazer a reforma agrária, enquanto “índios fedorentos, não educados e não falantes de nossa língua” conseguem, hoje, 12% das terras brasileiras e fazem lobby no Congresso Nacional.

As polêmicas não param por aí. Seu vice, general Hamilton Mourão, o mesmo que referiu-se a mães e avós como geradoras de bandidos quando criam filhos sem a presença paterna, destacou que os brasileiros tinham em seu sangue a preguiça do índio e a malandragem do negro, fatores que travavam o desenvolvimento do país. “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem. Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural", declarou.

Em 2017, Bolsonaro teve mantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) uma condenação por danos morais após dizer durante uma discussão com a deputada Maria do Rosário (PT-RS) que jamais iria estuprar ela porque, segundo ele, ela não “merecia”.

As declarações contra homossexuais também já são conhecidas. Além de defender palmadas para "corrigir" filhos homossexuais, em 2011, durante entrevista ao programa CQC, da Rede Bandeirantes, afirmou que seu filho tinha "boa educação e um pai presente" e, por isso, "não corria o risco" de se tornar homossexual.

Neste ano, a Procuradoria-Geral da República apresentou denúncia contra o candidato por crime de racismo após ele afirmar que visitou um quilombo e “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada”.

Para a procuradora-geral Raquel Dodge, "Jair Bolsonaro tratou com total menoscabo os integrantes de comunidades quilombolas. Referiu-se a eles como se fossem animais, ao utilizar a palavra 'arroba'. Esta manifestação, inaceitável, alinha-se ao regime da escravidão, em que negros eram tratados como mera mercadoria, e à ideia de desigualdade entre seres humanos, o que é absolutamente refutado pela Constituição brasileira e por todos os Tratados e Convenções Internacionais de que o Brasil é signatário”, pontuou.

A denúncia, porém, foi rejeitada pelo STF por 3 votos a 2 no dia 11 de setembro.

Aliado a tudo isso, em 2017, durante discurso em Campina Grande (PB), Bolsonaro pregou a submissão da minoria não cristã à maioria. “Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.

Papel de liderança

Perante a postura considerada truculenta, a casa Lírio de Aruanda foi uma das poucas a se posicionar publicamente contra o militar da reserva e aderir às tags #elenão,  #elenunca e #terreiroscontrabolsonaro.

Postura de quem já sentiu na pele o preconceito. Nascido em Sergipe, Jackson Santos mudou-se para São Paulo com apenas dois anos e foi criado pela mãe, divorciada do pai, na Vila Prudente, zona Leste de São Paulo. Católico praticante, coroinha da igreja onde frequentava, foi aos 13 anos que descobriu a Umbanda, levado a um terreiro por uma tia.

O terreiro Lírio de Aruanda tem 12 anos de história e é administrado por ele e o marido, o professor de Sociologia Luís Henrique, com quem convive há 15 anos. Ao lado dele, adotou dois meninos de seis anos que viviam num abrigo.

Quando foi buscar escola para as crianças, ouviu de um diretor que não havia vaga, “apesar de aceitarem pessoas como eles”, referindo-se aos pais homossexuais.

A repetição de um processo de preconceito que já marca sua história. “Minha mãe lutou muito para que eu pudesse estudar em escola particular e era o único negro da minha sala. Quando já advogado, trabalhava em um grande escritório e questionei porque de não ser promovido, se eu era responsável por uma conta que trazia muito retorno. E meu chefe disse que não tinha condição de ter alguém como eu na liderança dos processos. Por um acaso, minha chefe era loira, dos olhos claros e rica. Eu era negro, pobre e gay”, lembra.  

Para que processos como esse não se repitam, e uma religião que abre os braços a todos não padeça diante de mais preconceito, Santos defende a necessidade de se posicionar como cidadão e líder religioso. “Eu sei o que é preconceito, não posso me omitir, deixar de manifestar, até para ajudar na formação da consciência crítica de meus filhos e da comunidade”, ressalta.

 

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